Entrevista por Mafalda Ruão para Umbigo Magazine
Mafalda Ruão entrevista Luísa Jacinto, a autora da capa de junho da edição online da Umbigo, que vive com a pintura um diálogo infindo; ora esta não carregasse em si a possibilidade inexorável de hermenêutica, a procura pela razão de ser. Ao princípio, um gesto que rasga a fronteira entre o incorpóreo e a figuração. De onde, um intenso cromático formal, assumidamente matérico e imperfeito, caminha rumo à intangibilidade imersiva da perceção que não se atreve a ser lateral nem previsível; antes fluída, errante, transversal.
MR – Uma vez quando questionada sobre o que vias ao olhar a tua obra, afirmaste “Se estiver terminada, olho para o relógio ou para a janela”. O que marca essa diferença?
LJ – Quando uma obra está terminada, para mim acabou. É o caminho até estar concluída que reclama a minha atenção. Uma vez concluída a obra torna-se de alguma maneira inacessível para mim, já não fala comigo, só me pertence em parte e mesmo essa parte já não quer conversa comigo. Demoro muito tempo a conseguir ver o que fiz. Olho para a janela se tiver mais disponibilidade, para o relógio se tiver menos.
MR – Ainda que a tua prática artística já tenha compreendido distintos media, destaca-se sobretudo pela pintura. Porquê a pintura?
LJ – Não me é estranha a sensação de atravessar o mundo como se de uma imensa pintura se tratasse. Apesar de trabalhar com diferentes media – colagem, vídeo, desenho, instalação, entre outros, é sempre uma lógica pictórica, associada a uma lógica fílmica – o tempo e o arrastar desse atravessamento, o que acho que trespassa todo o trabalho. Deram-me uma caixa com tintas a óleo quando tinha 9 anos e acho que nunca me senti com tanta autoridade! Não sei se ser míope, ter um grande à vontade com a cor, e um enorme prazer em ver, em fazer, ver e fazer mais e mais dentro da pintura explica o que quer que seja, mas também não preciso de justificação.
MR – Intenção ou intuição? De que forma a intuição e intenção desempenham um papel essencial à criação?
LJ – As duas. A intenção de ir até ao fim. Pode ser útil ter uma intenção mais ou menos clara de fazer uma peça assim ou assado, mas é importante estar aberto a surpresas, a contradições, a intuição é essencial. O que não se sabe, o que não se espera, o que não se entende bem tem de entrar no processo criativo ou as coisas não acontecem.
MR – Mensagem ou estética? Num trabalho que navega, e parafraseando Marta Mestre, “sempre num espaço entre a ambivalência, o encobrimento e a poesia”, tantas vezes onírico, etéreo, de sentido expandido, como um ponto de transição; qual a força da pintura como vetor de tradução da mensagem que pretendes transmitir?
LJ – Se eu soubesse que mensagem pretendo transmitir não fazia arte. Se fosse só forma também não era neste campo que actuaria. Lembrei-me do título de um romance da Carmen Martin Gaite, Lo raro es vivir. A estética também contém a possibilidade de hermenêutica, de interpretação, de uma procura pela razão de ser. Inclino-me sem dúvida muito mais para esse campo aberto do que para uma função de comunicação.
MR – Sobre o trabalho Casa (2016) e a sua simplicidade metafórica que confronta a estabilidade e familiaridade do lar, simultaneamente protetor e restritivo, à imprevisibilidade intempestiva de condições meteorológicas opostas e radicais. Trabalhar site-specific ou, como o referes, work in space, foi/é um desafio, um acréscimo de sentido às obras ou, de alguma forma, uma limitação à criação?
LJ – Responder a uma circunstância específica (um contexto compreendido de uma forma lata e as suas características espaciais) pode ser um desafio muito estimulante. A instalação Casa, 2016 foi concebida para dois espaços da Casa-Museu Medeiros e Almeida, que é uma casa burguesa apalaçada que tem sobretudo mobiliário, muitos objetos de artes decorativas (relógios incríveis!), e pinturas de paisagem europeias. Optei por intervir num quarto com painéis de madeira e pinturas campestres nas paredes, Human Made, 2016, onde apaguei as luzes, arredei os móveis para os cantos, cobri-os a todos com lençóis (como se a casa tivesse sido fechada) e simulei uma tempestade, com uma instalação de som de chuva e trovões e um strob a responder ao som com os relâmpagos. Esta instalação não faz sentido em qualquer lugar. Já no escritório/biblioteca, instalei a obra And shining this our now must come to then, uma projeção de um diapositivo com uma mão de um bebé e a projeção de um arco-íris produzido através de um prisma de vidro in loco, tratam-se de duas projeções. Se numa das salas era trazida a lembrança de uma natureza indómita, ameaçadora e voraz (aquela pela qual os humanos construem casas), na outra era a desarmante beleza, a maravilha de tudo, a mais pura capacidade de espanto, numa divisão dedicada ao estudo e ao conhecimento. Esta exposição foi a primeira do ciclo Estufa, com intervenções sucessivas de outros artistas (Diogo Bolota, Isabel Simões, Vítor Reis e Paulo Lisboa). Todas as exposições foram acompanhadas por uma pequena publicação, com o design da Joana Tavares, de edição de 50 exemplares. A publicação Casa tinha reproduções de todos os céus pintados nas pinturas de paisagem da coleção da Casa-Museu, e um poema do Eugénio de Andrade:
O lugar da casa
Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
MR – As exposições We had the experience but missed the meaning (2018) e We can always escape in the car (2017) têm em comum o diálogo entre a heterogeneidade de escalas extremas e de uma lógica que transita entre a figuração e a abstração. Quando a díspar formalidade da disposição e do confronto das obras permeia tão fortemente uma exposição, qual é o papel do observador na construção da obra de arte?
LJ – É um papel ativo de co-criador. Na exposição que tenho agora na Galeria Quadrado Azul essa dicotomia – entre figuração e abstração, entre imagens na qual reconhecemos algo do mundo e outra na qual não se identifica um referente exterior – também acontece. São trabalhos produzidos ao mesmo tempo, eles dialogam entre si. A tensão que se cria, sobretudo na nossa perceção, ao estar perante esses dois tipos de trabalho, o hiato em que nos encontramos, é fundamental. O observador é chamado a gerir esta relação magnética.
MR – Em Véu-Pedra (2019) destacam-se uns quadrados brancos acrescentados à pintura que, todavia, nela não se integram. Que necessidade sentes de extravasar o que já foi feito e, desta forma, abrir novos caminhos? Ou, se o quiseres, de “desformalizar” a pintura?
LJ – Gosto de pensar a pintura de uma forma lata, de encontrar novas formas de entender o que é e o que pode ser pintura. É cor numa superfície? Quaisquer pigmentos em quaisquer superfícies? Com tão grande amplitude de escalas e meios, falamos sempre de pintura? Fazem coisas tão diferentes! É um espaço que nos envolve? É uma fresta de 2 x 8 cm que nos faz viajar para muito longe? E a pintura, é sempre uma imagem? Há tantas variáveis para nesta equação tão simples… é uma entrevista perpétua.
MR – Sobre o futuro e o que se segue, podes partilhar connosco os próximos projetos?
LJ – Tenho neste momento várias exposições a decorrer.
Em Lisboa:
Na Brotéria, uma exposição com a artista alemã Isa Melsheimer, É o cenário que se move / It’s the scenery that moves, até 2 de julho. Teremos uma conversa aberta sobre a exposição com a Isa Melsheimer e eu no dia 28 de Junho, terça-feira, às 19h, na Brotéria. Estão todos convidados!
A ideia de voltar / The idea of returning, exposição individual na Galeria Quadrado Azul, até final de julho.
Em Évora:
Participo na exposição Tisanas, Infusões para Tempos Próximos / Tisanas, infusions for the impending future, com curadoria de Maria do Mar Fazenda, no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, patente até Outubro.
Recebi uma bolsa do Atelier-Museu Júlio Pomar e vou participar na residência artística Residency Unlimited em Nova Iorque, durante três meses, entre setembro e novembro 2022.
Estou à procura de um atelier grande, estável e a preço de apoio em Lisboa/arredores a partir de Dezembro :D!