The day passed as something we carry in our pocket
Texto de Maria do Mar Fazenda que acompanharia uma exposição que foi cancelada devido à pandemia, em 2020.
the day passed as something we carry in our pocket
Escrevo este texto à distância no tempo e no espaço de uma exposição onde Luísa Jacinto (Lisboa, 1984) irá apresentar um conjunto de obras recentes na galería Silvestre, em Madrid.
À distância no tempo e no espaço porque a exposição ainda não aconteceu. Há poucos dias estive no atelier da artista em Lisboa e vi as obras que irão ser expostas em Madrid. Tenho vindo a acompanhar o seu trabalho e já vi obras suas anteriores instaladas em diversos espaços. Ainda assim há um hiato entre aquilo que vi no seu espaço de trabalho (obras sem estarem suspensas, pinturas sem molduras, na horizontal o que irá ser apresentado na vertical, etc.) e aquilo que vamos ver na exposição.
Devido a esta indefinição ou impossibilidade de antever, de facto, a exposição — onde o leitor deste texto agora se encontra—, tomo a instalação das obras apresentadas como uma constelação. Esta imagem-pensamento (Denkbild) benjaminiana aplica-se particularmente bem a esta exposição que Luísa Jacinto organizou em torno de duas peças de grandes dimensões que, suspensas do tecto, dividem o espaço da galeria. Sobrepondo à planta da galeria um outro percurso expositivo, a artista propõe um modo outro de estar e olhar aquele espaço e aquilo que, temporariamente, o habita.
Estas duas pinturas emprestam o título à exposição: the day passed as something we carry in our pocket e representam um anoitecer (o dia que passou) e uma alvorada (o ciclo da vida a reiniciar-se a cada dia: o quotidiano presente/esquecido que cada um de nós transporta consigo mesmo, e dentro de um bolso). As constelações são mais visíveis em noites de lua nova mas permanecem no céu após o nascer do dia. Também as suas pinturas oscilam entre a opacidade e a transparência, a proximidade e o difuso, a pulverização e o detalhe.
Podemos também nomear diferentes escalas neste conjunto de obras produzidas entre 2019 e 2020. Não se trata de uma escala diferenciadora de grandeza, quantitativa ou qualitativa, mas de diferentes atributos. As obras suspensas do tecto relacionam-se com o espaço arquitectónico e com o nosso corpo provocando um efeito imersivo: «fazer pintura com o espaço da galeria», como descreveu a artista. As pinturas sobre madeira solicitam uma estadia demorada do nosso olhar, «uma atenção prosaica» perante aquelas imagens de pequenas dimensões.
Atravessa a pintura de Luísa Jacinto um subtil humor (witty, em inglês, seria a palavra mais acertada para a descrever), que a meu ver não se revela tanto no imaginário explorado mas na mise en scène que faz do seu trabalho. Nesta exposição é, também, no contraponto entre o que é representado e como nos é apresentado que este fino humor se faz sentir: a duração de um amanhecer ou de um entardecer contrasta com a rapidez do vislumbre de uma “imagem fotográfica” da água a escorrer, da breve pausa do casal dançante, etc. Todavia, atravessamos as “paisagens-ecrãs” e convergimos nos momentos capturados nas pinturas de pequenas dimensões que pontuam o espaço expositivo.
Na prática de Luísa Jacinto encontra-se também em jogo uma dimensão cinematográfica que me parece tão evidente quanto inabordável. Não estou a pensar na qualidade cinéfila de algumas das suas pinturas, em especial as figurativas que nos sugerem frames retirados de uma sequência. Desejo inverter ou ir além das trocas clássicas entre cinema e pintura: o quadro, a montagem, o ecrã. É possível indicar bons exemplos desta abordagem, nomeadamente na sua pintura abstracta em que são recorrentes as sobreposições, aberturas ou cesuras de planos de luz ou apagamento. No entanto, gostaria de pensar a sua pintura como se pensa o cinema. Parece-me que é justamente o que nos é devolvido da presente exposição que Luísa Jacinto nos dá a ver, como um filme. Disto é exemplar a experiência da constelação que desenhou para o espaço da galeria: as desiguais durações de atenção que diferentes imagens/pinturas convocam, o movimento que nos é proposto percorrer para olhar um espaço feito pintura. Mais, além de estar a projectar a presente exposição, tenho também em mente as instalações “Cross” (2018-2019) e “Véu-Pedra” (2019-2020). São peças que associo a uma ideia de percurso espaciotemporal, como um filme, como a vida.
Os textos sobre o trabalho de artistas compõem-se de deslocações: pensar a obra a partir de, através de, de ali adiante. Estes desvios narrativos convocam elementos ao processo de tradução — interpretação, contextualização, mediação da obra. Mas também gozo em aproximar este exercício a uma ideia de transcrição executada por outra mão. Ou como se de uma transcrição musical se tratasse: o arranjo de uma obra para um instrumento para o qual não foi originalmente escrita. Aqui, a obra é, claro, a pintura de Luísa Jacinto que, por definição, rompe com o plano da linguagem. A minha escrita seria o instrumento que a pintura de Luísa Jacinto não tomou em conta. O seu ponto de origem será sempre outro: o seu. E nós podemos por breves momentos numa noite escura vislumbrar essa configuração estrelar até o dia clarear e outra constelação começar a tomar forma.
Maria do Mar Fazenda