Shining Indifference
Ver InfoExposição individual na Sala do Cinzeiro, MAAT Central, Lisboa, Portugal
Curadoria de João Pinharanda
26 Março — 2 Setembro, 2024
Texto que acompanhou a exposição por João Pinharanda
O véu diafano
Explorando derivativas das experiências históricas do monocromatismo e da colour field painting americana através da exploração dos binómios inseparáveis cor-luz e suporte-espaço, o trabalho de Luísa Jacinto (Lisboa, 1984) é um processo permanente de experimentação dos limites da linguagem da pintura.
Na presente fase de investigação, a artista dá à cor um corpo próprio que a separa do corpo habitual da pintura, prescindindo das superfícies de suporte contínuas – dos planos rígidos (como a madeira, a parede ou o metal) ou dos planos tensionados (como a tela) – e garantindo-lhe autonomia e liberdade.
Autonomia material: fazendo da cor corpo inseparável dos novos suportes; liberdade espacial: através da exploração dos espaços onde as obras são apresentadas. E assim se convoca um diálogo cenográfico em que somos coreograficamente implicados, assim se propõem percursos ao mesmo tempo livres e constrangedores, labirínticos e abertos.
Luísa Jacinto parte de algumas experiências anteriores: a questão da cor, dos modos de a fixar e dar a ver, mas principalmente de a integrar no espaço, é explorada numa peça – Em todo o lado / Em lado nenhum, 2024 – composta por duas delicadas e enormes cortinas em terylene, pintadas a spray e bordadas (sempre de ambos os lados). São ecrãs soltos que percorrem e ocupam o espaço segundo uma estrutura suspensa de formato espiralado. Duas manchas cromáticas escuras surgem invertidas (uma calote no topo e outra na base de cada uma das cortinas) dinamizando a superfície e o espaço. Simultaneamente, a artista define um horizonte marítimo em linhas bordadas (transpondo um diálogo do interior da sala para a paisagem exterior do estuário do Tejo), o que acentua a dinâmica de um conjunto que ondula ainda ao sabor das correntes de ar ou das deslocações dos visitantes em redor do seu espaço constrangido/distendido. Assim, estas cortinas estabelecem connosco uma relação dinâmica – de tal modo que podem ser entendidas como cortinas de uma cena da qual, na herança dos «penetráveis» de Hélio Oiticica, somos convidados a fazer parte.
Nesta mesma tendência de interposição de ecrãs no espaço, Luísa Jacinto apresenta ainda o início de novas linhas de trabalho. Na primeira, cria suportes em borracha sintética que têm como características mais interessantes a translucidez, a flexibilidade e a incorporação da cor (série «Desconhecidos», 2024). Na segunda, a artista experimenta afastar-se das superfícies de suporte contínuas, criando «desenhos» espaciais de grande ambiguidade – são verdadeiras redes, simultaneamente bidimensionais e tridimensionais (série «Trabalho no espaço», 2024).
As películas de cor da série «Desconhecidos» funcionam como vitrais onde a luz é retida – contrariam a espiritualidade fria do vidro, convocando uma sensualidade atmosférica e táctil que nos remete para a pintura colorista de Turner, subtil e misteriosa; mas não deixam de sugerir as experiências da representação mística da luz interior e da luz divina nos retábulos medievais e primo-renascentistas. A disposição destas obras no espaço e a solução de iluminação própria acrescentam novas soluções de cenografia: cada obra desta série se dobra sobre si mesma, enriquecendo os efeitos próprios de transparência, opacidade e policromia dos materiais e incorporando na matéria de suporte não apenas cor, mas também um elemento de iluminação individual e interna, constituído por um tubo LED branco, que é simultaneamente brilho acrescentado à luz ambiente e suporte de suspensão da peça.
Os «desenhos» da série «Trabalho no espaço» são constituídos por fios coloridos de nylon. Endurecidos por camadas de verniz que os enrijecem, simulam no espaço as linhas de um desenho geométrico sobre o papel (grelhas de pendor op ou cinético em composições de acentuadas linhas de fuga); suspensos, são simultaneamente linha, matéria e cor – ou melhor, são a expressão matérica da cor, desenhos que podem afirmar-se sozinhos sobre a parede ou estabelecer diálogos improváveis com o espaço e com outras peças da exposição, surgindo no interior de algumas delas ou criando jogos de sombra e duplicação nas esquinas da sala.
Com estas duas orientações na sua investigação, Luísa Jacinto pretende materializar e autonomizar a linha e a cor no desenho e na pintura. Há no conjunto de todas estas obras uma vontade de afirmar a independência dos elementos da pintura em relação aos nossos sentimentos e subjetividades — de tal modo que a artista atribuí à exposição que as reúne o título de Shining Indifference. Mas, o forte apelo à participação dos visitantes que estas obras fazem, a estranheza que os seus elementos (matérias e luz) nos provocam, o facto de a membrana de borracha sintética e o terylene das cortinas nos desafiarem a ver através das suas superfícies mas depois nos negarem ou dificultarem essa visão, ou ainda o facto de os véus diáfanos que ocupam a sala se dobrarem sobre si mesmos e se desdobrarem e se romperem, tudo isso oferece uma cena aberta ao olhar deambulante de cada um.
João Pinharanda