A manhã não vai ser diferente da noite
Ver InfoLa mañana no será diferente de la noche
Exposição individual na Galería Silvestre, Madrid, Espanha
5 Fevereiro - 26 Março 2022
Todas as imagens @ Paula Caballero
Texto que acompanhou a exposição de Maria do Mar Fazenda
A manhã não vai ser diferente da noite
Naquele dia, a criança tinha sido a primeira a levantar-se. Foi brincar para o pátio murado com tijolos cinza-claro, onde havia um portão vermelho, o piso tinha uma área cimentada e outra de relva queimada pelo sol, duas janelas do interior da casa davam para esse exterior, o acesso era feito por dois degraus. Sozinha a criança entretinha-se a definir espaços, a nomear lugares, a imaginar atividades. Naquela manhã convocava todos os dias que tinha vivido até então. Quando o adulto chegou a criança estava a andar de triciclo. Na fotografia, a criança está sentada no triciclo parado com os pés no chão e com as suas mãos afastadas entre si. O espaço entre as palmas das suas mãozinhas é o foco da atenção da criança, da conversa e da fotografia.
É também a partir de uma fotografia a preto e branco que Agnés Varda parte para realizar o filme Ulisses (1982). Em 1954, Varda fotografou um amigo e uma criança numa praia durante um passeio a Calais. A fotografia é o motivo e o motor dos encontros que o filme provoca no seu fazer. Uma diagonal na fotografia define o itinerário do filme que começa por ir ao encontro das figuras que habitam a fotografia e a memória que cada um guarda desse dia. O filme regista o que cada um constrói e projeta a partir daquela imagem. Como é habitual nos seus filmes, Varda abre progressivamente o jogo (da memória, das associações, das ideias) a outras personagens no filme (e, a nós, que estamos fora dele), mas também extrapolando o mesmo tempo histórico da imagem para contextos paralelos ou ainda isolando elementos da fotografia e aproximando-os a outros imaginários.
Como é que duas fotografias se relacionam com o campo da pintura onde Luísa Jacinto se move? Para começar, Ulisses não é um filme sobre uma fotografia, mas sobre o que é uma imagem (e o trabalho da Pintura não tem outro motor que não este mesmo); a invocação da primeira fotografia teve como motivo ativar a memória de um determinado gesto e o reviver do espaço e do tempo que o imaginou (idem). Este último exercício em torno de uma memória pessoal foi motivado pela descrição de uma história que a Luísa me contou sobre um dos seus filhos no dia em fui ao seu atelier ver os trabalhos que preparava para apresentar na presente exposição. O episódio do gesto que o seu filho fez para traduzir uma determinada duração de tempo num intervalo físico, interessou-lhe nesse movimento: “a sua subjetividade e interdependência elástica entre tempo e espaço, talvez à semelhança dos intervalos cromáticos matinais/crepusculares com que tenho trabalhado, que duram pouco no espaço, mas ficam em nós muito mais tempo”. A ambivalência e a convivência de tão diversas sensibilidades (formais e cromáticas, poéticas e relacionais, espirituais e chãs) trespassam o percurso artístico de Luísa Jacinto.
Em A manhã não vai ser diferente da noite, a artista reúne duas recentes séries de trabalho produzidas em paralelo durante o período pandémico que atravessamos: Shade e Thin Air. Ambos os corpos de trabalho partilham o mesmo modo de produção. As superfícies são geradas paulatina e progressivamente num processo quase cego: através da aplicação difusa da cor, sobre planos não distendidos, com máscaras que criam sedimentos de (re)velação, a incorporação do lastro da descolagem de fragmentos ou o retomar de pinturas abandonadas, etc. fazem com que a atmosfera da pintura se demore a estabilizar. Uma vez terminado este processo, a pintura transforma-se novamente: quando se torna transparência e tingimento da nossa visão; quando é reconfigurada e reenquadrada, mas também reencontrada, por exemplo, no seu verso, e lhe são definidos novos limites e contornos. E talvez seja apenas a partir deste momento que a artista toma conhecimento da pintura que produziu, permitindo-lhe então criar relações espaciotemporais entre as pinturas. Como é possível constatar nas duas séries, Shade e Thin Air, que agora apresenta, que adotam distintas estratégias para habitar o espaço expositivo e consequentemente para serem observadas.
A Galería Silvestre divide-se em três zonas, a que Luísa Jacinto acrescentou, na sua distribuição das peças, uma quarta: a perspetiva de quem observa do exterior para o interior. Proponho pensar as suas obras como personagens de uma dada encenação. Ainda que não sejam representadas figuras humanas (como em trabalhos anteriores), as pinturas propõem a participação numa narrativa. Também em pinturas abstratas de séries que antecederam estas, a convocação do corpo era feita através da arquitetura encenada nos quadros, aqui, creio que a estratégia é diversa: as figuras “pintadas” pela artista, talvez, sejamos nós mesmos, os observadores da sua pintura, os visitantes que deambulamos pelo espaço expositivo. No entanto, é exatamente no reverso da acepção da sua pintura como teatral ou do entendimento das suas peças enquanto um cenário, que nos posicionamos.
A intuição da artista de organizar e nomear atmosferas delimitadas e amplificadas pela sua pintura não é outra senão convocar-nos a sentirmo-nos parte integrante do teatro da vida. E da possibilidade de medirmos o espaço e o tempo através de gestos antropológicos que são ciclicamente retomados e reencontrados entre o clarão e a opacidade das nossas alvoradas e dos crepúsculos porvir.
Arrábida e Lisboa, janeiro de 2022
Maria do Mar Fazenda